Resenha – O imperador de todos os males: Uma biografia do câncer

 

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Excelente leitura para quem quer se inteirar dessa doença inominável que nos acompanha desde os primórdios da humanidade. O texto é fluído e te instiga a prosseguir e saber os avanços da ciência nas descobertas e métodos de lidar com o câncer.

Abaixo listo algumas questões que são respondidas com base nesta leitura:

  1. Por que o nome da doença é Câncer? Na época de Hipócrates, por volta de 400 a.C., o termo câncer apareceu pela primeira vez na literatura médica: karkinos, da palavra grega para “caranguejo”. O tumor, com os vasos sanguíneos inchados à sua volta, fez Hipócrates pensar num caranguejo enterrado na areia com as patas abertas em círculo. Outra palavra grega está ligada à história do câncer – onkos, usada para descrever tumores e de onde a oncologia tirou seu nome, era o termo utilizado para denominar uma massa, uma carga ou mais comumente um fardo; o câncer era imaginado como um peso carregado pelo corpo.
  2. Como se deu o entendimento do câncer ao longo da história? Por volta de 400 a.C., o entendimento geral era de que o corpo era composto de quatro fluidos cardeais chamados humores: sangue, bile negra, bile amarela e fleuma. Cada fluido com sua cor (vermelha, negra, amarela e branca). No corpo normal, esses quatro fluidos mantinham um equilíbrio perfeito, apesar de precário. Na doença, o equilíbrio era desfeito pelo excesso de um dos fluidos. A teoria dos fluidos se manteve até a criação do mapa anatômico de Andreas Versalius, por volta de 1538; o entendimento de que a bile negra causava o câncer continuou até o ano de 1793, após a obra de Matthew Baillie, “A anatomia mórbida de algumas das partes mais importantes do corpo humano”. Somente em 1989, com o trabalho de Varmus e Bishop, foi descoberta a origem celular dos oncogenes retrovirais.
  3. Como foi combate contra o câncer ao longo do tempo? Basicamente, conforme a medicina evoluiu, as medidas de ação melhoraram. Inicialmente, o entendimento era fazer a extirpação do tecido canceroso (2500 a.C – 1890). O combate nesse campo era mais visto no câncer de mama. Com a manipulação de raios-x em 1895 por Wilhelm Roentgen, começou o estudo da radiologia no combate ao câncer, a duras penas, pois o elemento químico rádio é muito agressivo às células, sendo ele mesmo causador de câncer. O principal problema é que os raios-x matam principalmente as células que mais se proliferam com rapidez no corpo. Por exemplo, as células da pele, unhas, gengiva e sangue. Vários são os efeitos colaterais do uso desmedido dos raios-x, como sarcomas, leucemia, tumores nos ossos, língua, pescoço etc. Com a evolução da química, percebeu-se que por meio da aplicação dela na criação de corantes sintéticos, em 1870 químicos alemães haviam desenvolvido tantas moléculas que não sabiam fazer uso prático delas. Em 1917, na pequena cidade belga de Ypres, houve o primeiro uso de gás de mostarda em combates. Em uma só noite, o gás feriu ou matou 2mil soldados. Após um ano, deixou em sua esteira milhares de mortos. Em 1920, retornando a Ypres, patologistas examinaram os poucos sobreviventes do bombardeio de gás de mostarda. Ele tinha atingido a medula óssea e eliminado certas populações de células – mostrando que tinha uma afinidade específica. Isso iniciou o uso da quimioterapia no tratamento do câncer, que no final das contas, era a ministração de elementos químicos (diga se passagem, venenos) no combate às células cancerosas. Com uma ideia simples da doença, imagine que ela está te levando para o abismo. A quimioterapia te leva à beira do precipício, com a finalidade de fazer o câncer cair sozinho (ou os dois juntos). Na década de 1990, com a evolução da genética, iniciou-se o uso de supressores de oncogenes, intervindo em cada tipo de câncer de maneira mais efetiva.

O livro também aborda diversos temas que envolveram o câncer, como a indústria do tabaco, a evolução do câncer,  a inércia do governo americano no apoio às pesquisas científicas e faz referências aos cientistas expoentes que contribuíram nas descobertas.

Enfim, a leitura é excepcional, ela te dá um novo referencial à esta doença, que é uma mutação, que evolui para sobreviver e, como o autor diz, se comporta como uma cópia perfeita de nós mesmos. Abaixo segue um trecho do livro demonstrando a história de um câncer de pulmão:

No começo dos anos 1990, biólogos do câncer já podiam começar a construir um modelo da doença em termos de mudanças moleculares ocorridas nos genes. Para compreender esse modelos, vamos partir da célula normal, digamos a célula que reside no pulmão esquerdo de um instalador de equipamento contra incêndio de quarenta anos de idade. Em certa manhã de 1968, uma minúscula lasca de asbesto de seu equipamento flutua no ar e vai alojar-se na vizinhança dessa célula. O corpo reage à lasca de asbesto com uma inflamação. As células em volta da lasca começam a dividir-se furiosamente, como um minúsculo ferimento que tenta sarar, e um pequeno caroço de células derivadas da célula original se forma naquele ponto.

Numa célula desse caroço ocorre uma mutação acidental no gene ras. A mutação cria uma versão ativada do ras. A célula que contém o gene mutante é levada a crescer mais rapidamente do que suas vizinhas e forma um caroço dentro do caroço de células originais. Ainda não é uma célula cancerosa, mas uma célula na qual a divisão descontrolada foi parcialmente desencadeada – o antepassado primordial do câncer.

Passa-se uma década. A pequena coleção de células mutantes ras continua proliferando, despercebida, na periferia do pulmão. O homem fuma cigarros, e um carcinógeno químico do alcatrão chega à periferia do pulmão e esbarra no caroço de células mutantes ras. Uma célula desse caroço sofre uma segunda mutação em seus genes, ativando um segundo oncogene. 

Passa-se mais uma década. Outra célula dessa massa secundária de células é alvo de um raio X errante e sofre outra mutação, dessa vez desativando um gene supressor de tumor. Essa mutação tem pouco efeito, uma vez que a célula tem uma segunda cópia desse gene. Mas, no ano seguinte, outra mutação desativa a segunda cópia do gene supressor de tumor, criando uma célula com dois oncogenes ativados e um gene supressor de tumor desativado.

Uma marcha fatal está em andamento; tem início uma desencadeação. As células, já com quatro mutações, começam a crescer mais do que suas irmãs. À medida que crescem, sofrem mutações adicionais e ativam trajetórias, formando células ainda mais adaptadas ao crescimento e à sobrevivência. Uma mutação no tumor lhes permite estimular o crescimento de vasos sanguíneos; outra mutação dentro desse tumor alimentado por sangue o habilita a sobreviver mesmo em áreas do corpo com pouco oxigênio.

Células mutantes geram células que geram células. Um gene que aumenta a mobilidade é ativado numa célula. Essa célula, tendo adquirido motilidade, pode migrar através do tecido pulmonar e penetrar na corrente sanguínea. Uma descendente dessa célula cancerosa móvel adquire a capacidade de sobreviver no osso. Depois de migrar pelo sangue, chega ao lado externo da pélvis, onde começa outro ciclo de sobrevivência, seleção e colonização. Ela representa a primeira metástase de um tumor que teve origem no pulmão.

O homem de vez em quando sente falta de ar. Uma dor formiga-lhe na periferia do pulmão. Ocasionalmente, sente algo mover-se sob a caixa torácica quando caminha. Mais um ano se passa, e as sensações aumentam. O homem vai ver um médico e faz um exame de tomografia computadorizada, que revela uma espécie de crosta em volta de um brônquio no pulmão. Uma biópsia mostra câncer. Um cirurgião examina o homem e o resultado da tomografia e o declara inoperável. Três semanas depois da visita, o homem volta à clínica médica queixando-se de dor nas costelas e nos quadris. Um exame nos ossos revela metástase na pélvis e nas costelas.

Têm início sessões de quimioterapia intravenosa. As células do tumor do pulmão respondem bem. O homem submete-se a um regime punitivo de drogas que matam múltiplas células. Durante o tratamento, uma célula do tumor sofre outra mutação que a torna resistente à droga usada contra o câncer. Sete meses depois do diagnóstico inicial, o tumor reincide em todo o corpo — nos pulmões, nos ossos, no fígado. Na manhã de 17 de outubro de 2004, profundamente dopado com opiáceos num leito de hospital em Boston, cercado pela mulher e pelos filhos, o homem morre de câncer metastático de pulmão, com uma lasca de asbesto alojada na periferia do órgão. Tem 76 anos.

Comecei a contar essa história como um caso hipotético de câncer. Os genes, os carcinógenos e a sequência de mutações do relato são todos, sem dúvida, hipotéticos. Mas o corpo no centro da história é real. Esse homem foi o primeiro paciente a morrer sob meus cuidados, durante minha residência em oncologia no Massachusetts General Hospital.

A medicina, como eu disse, começa pelo ato de contar histórias. Pacientes contam histórias para descrever doenças; médicos contam histórias para compreendê-las. Esta história da gênese de um câncer — de carcinógenos que causam mutações em genes internos e desencadeiam cascatas de trajetórias nas células que então passam pelo ciclo de mutação, seleção e sobrevivência — representa o esboço mais convincente que temos do nascimento do câncer.

 

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